“Quando o dinheiro foi depositado, falei:
- Mãe, vitória, você conseguiu, vamos comemorar, vamos para a Itália, rever nossos antepassados!
- Já conheço a Itália.
- Então vamos para Paris, para você visitar sua filha e seus netos!
- Já fui muitas vezes a Paris.
- Então vamos jantar no Fasano, tomar um porre!
- Conheço o Fasano, ia muito com seu pai, quando era uma cantina, somos amigos do velho.
- Então o que você quer fazer? O dinheiro está na sua conta!
Ela me olhou humildemente e falou o que mais tinha vontade de fazer naquele momento, o que a deixaria a pessoa mais feliz e completa da cidade:
- Vamos tomar um sorvete na lanchonete do prédio.”
Esse trecho está nas páginas finais de Ainda estou Aqui, o livro de Marcelo Rubens Paiva que virou filme e é uma unanimidade entre todos os que assistiram.
Eu ainda não assisti, espero ter o tempo para isso na próxima semana, mas li o livro e estou participando o Clube do Livro FN, sim, o clube de Felipe Neto. Até aqui, só elogios a tudo o que vi de aulas e materiais complementares.
Esse diálogo me tocou profundamente, pois há muitos anos, a vida me tem sorrido e eu viajo com minha mãe pelo menos uma vez ao ano. Juntas, exploramos Tóquio, Nova York, Zurique, Oslo, Estocolmo, Londres, Edimburgo, Cartagena.
Anos atrás, quando morava na Europa, fizemos muitas road trips pelo leste europeu, e visitamos a Ucrânia, cidadezinhas da Polônia, Hungria e Eslováquia, onde meus pais viviam.
Enquanto meu pai trabalhava, nós duas selecionávamos algum destino próximo, colocávamos no GPS (ainda não era waze) e fazíamos um bate e volta. Já nos perdemos inúmeras vezes, mas em algum lugar chegávamos.
Agora, que estamos no Brasil, selecionamos algum destino, conciliamos as agendas e tomamos alguns aviões. Nunca é uma perna só. Sempre tem conexões, às vezes imigração, trens e um pouco de aventura.
Ao longo dessas viagens, pude ir amadurecendo, desenvolvendo minha empatia e inteligência emocional. Minha mãe aturou muito desaforo da minha parte, quando eu ficava impaciente com as direções erradas, algumas traduções estranhas, mal entendidos em língua estrangeira.
Eu morria de vergonha de “dar algum fora” em filas, em situações fora do país, e preferia repreendê-la do que apreciar a oportunidade que estávamos tendo.
Apesar disso, minha mãe continuou fazendo absoluta questão da minha companhia, e deixava por minha conta a escolha do destino, do roteiro, do restaurante do almoço, e de uns tempos pra cá, da hospedagem que vamos dormir.
Minha mãe tem 60 anos, e eu 40. Acredito que estamos num intervalo de vida que me permite compreende-la muito mais, relevar ninharias que nunca foram importantes, e apreciar as nossas aventuras e a sua companhia.
Dona Eunice Paiva, uma advogada absolutamente brilhante, cuja biblioteca deu inveja só de ler nas páginas de Ainda Estou Aqui, teve alzheimer e passou por todas as fases do declínio físico e mental previstas na rota da doença.
Quando ela finalmente recebe uma bolada, dinheiro que havia ficado preso por décadas em virtude da ditadura militar, o dinheiro já não fazia mais diferença alguma para ela.
Ela tinha dinheiro o suficiente, tempo livre em abundância, mas não tinha saúde para elaborar uma maneira muito intrincada de gasta-lo. Neste momento, tudo o que importava estava ao alcance do elevador.
Em tempos de final de ano, quase no Natal, ler essa história me relembrou de que a cada viagem que realizo na companhia de minha mãe, estamos numa contagem regressiva.
Ano após ano, nós duas vamos sentir o peso do envelhecimento, até que em algum ponto, as viagens não serão mais possíveis para nós. Neste momento, nos restará apreciar a companhia uma da outra, sem uma paisagem ou uma aventura para servir de pano de fundo.
Dito tudo isso, aquilo que hoje é tão importante para mim (e talvez para você), como os livros, aquela roupa boa de tecido nobre, o celular novo de câmera potente, o perfume Chanel (ou a marca que for da sua preferência), em algum ponto não importará.
Todo o skincare que hoje executo com disciplina, toda meditação, todo treino de força, todo estudo e fichamento de livro, pode ir parar em algum lugar escondido de mim mesma.
Nesse momento, em que nem as memórias serão mais companheiras, tudo o que importa é o presente, não o passado, nem o futuro. Não haverão metas, planos, espaço de armazenamento comprado no iCloud.
A história de dona Eunice, tantas numa única vida, me serviu de lembrete de que tudo passa. Como já disse Annie Ernaux, num livro que confesso não ter entendido direito, todas as imagens irão desaparecer.
Antes mesmo que 2025 chegue, nos pegando de roupas brancas e lista de metas, encontre a sua dona Eunice Paiva (pode ser sua mãe, mas pode ser você mesma) e certifique-se de que, quando questionada sobre o que quer fazer para comemorar, ela queira dividir o momento presente com você.
Um Natal amoroso e um fim de ano leve é o meu desejo profundo, de todo o coração. Estarei com minha mãe neste dia.
Lindo, Thais! <3
Que lindo esse texto, obrigada por ele! Também acabei de ler o livro e não vi o filme (sem tempo de ir ao cinema, tenho uma bebê de 2 meses), e adorei os ângulos que tu trouxeste. Feliz Natal ❤️