Se tem uma coisa que me é muito cara no meu relacionamento com Mozão (e foi em todos os que já tive), são aqueles pequenos rituais de casal, que a gente nem costuma chamar assim.
Aqueles hábitos partilhados a dois, que tornam a rotina uma coisa gostosa, que você sente falta quando fica impossibilitada de viver - e que em eventuais separações, doem tanto que parecem uma amputação real.
Ritualizar a vida é algo que a mim é muito caro, e que eu costumava abominar quando criança (principalmente na missa). Passei anos e anos sem sentir a menor falta de nenhum tipo de ritual, ainda que amasse rotinas, e quando passei a estudar ayurveda, esse assunto voltou a fazer parte dos meus interesses.
Durante a nossa vida, se você segue o que ayurveda recomenda, terá uma rotina diurna (chama dinacharya), uma rotina noturna (chamada ratricharya) e uma rotina de mudança de estação (chamada ritucharya).
Durante aquele primeiro ano todo, eu executava cada uma delas com disciplina e encantamento, meu corpo agradecendo, minha alma em casa. As rotinas estavam de volta com uma alegria desconhecida.
Foi em janeiro de 2021, no entanto, no primeiro retiro de meditação em silêncio que fiz na vida, que testemunhei uma vida ritualizada e minha vida mudou completamente.
Minha mestra (com quem eu viria a fazer a formação em yoga anos depois) entrou na sala, descalça, e se dirigiu diretamente ao altar. De joelhos, curvou-se às deidades, as mãos em prece, e só então, tomou a posição dela diante de nós, e recitou o mantra.
O retiro poderia ter terminado ali mesmo, que eu já teria “material” para pensar durante dias.
Mas é lógico, evidente, que nem todo ritual é religioso, ou obrigatório. Ainda que eu possa dizer a vocês, como alguém sem religião, que em certas horas, seria um alento ter uma prática consistente nesse sentido.
Existem inúmeras rotinas e rituais que, pelo seu grau de informalidade, podem nos passar batidos, e talvez só na ausência deles, vamos entender a magnitude e importância que tinham na nossa vida.
Como semana passada foi o Dia dos Namorados, pensei bastante no meu relacionamento e passei olhos por inúmeros textos de homenagem e reflexão sobre os relacionamentos das pessoas.
Muitos casais deram evidência do quanto gostam de dividir o cotidiano com a pessoa amada, e falam dos momentos mais simples como sendo os mais significativos. Eu mesma, embora tenha lembranças dos grandes momentos, tenho um apreço por essas pequenas partilhas.
Um livrinho gostoso de ler, e que me chamou a atenção justamente pelo título, é O Poder do Ritual, de Casper ter Kuile, em que ele investiga diversos rituais antigos (e majoritariamente religiosos) e evidencia a importância de continuarmos ritualizando a nossa vida.
“As necessidades básicas de introspecção, momentos de êxtase, beleza e sensação de que fazemos parte de algo maior, existem há milênios. No entanto, a forma como criamos essas experiências varia com o tempo.”
Casper ter Kuile - O Poder do Ritual
A maioria dos nossos rituais de casal foram criados sem uma intenção específica - na realidade, quase todos os que decidimos ‘por decreto’, não acontecem com tanta frequência, são mais facilmente esquecidos.
De todos, sem dúvida alguma o supercoffee 6h30 da manhã é o que mais funciona. O horário pode variar ligeiramente, mas 6h30 parece ser o único horário do dia inteiro que conseguimos tirar 30 minutinhos para compartilhar.
Alguém vai acordar antes, e esquentar a água, colocar a dose nas xícaras, e ficar no sofá. É sabido e tão confirmado quanto o sol nascer: quem acordou e saiu da cama, foi para o sofá. E fica lendo, com os cachorros, até o outro aparecer.
Damos bom dia para a Alexa, ela fala a curiosidade do dia, quase nunca nos parece interessante o suficiente para dar continuidade. Se eu escolher a música, ela varia. Se ele escolher, vai ser a playlist coffee table jazz, do Spotify, invariavelmente.
Se eu colocar a música, volume no 3, até ele não ouvir algo e pedir para baixar para o volume no 2. A essa hora, ninguém come ainda. Eu fico bebendo água por cima do supercoffee até acabar, e mais ou menos a essas alturas, acabou o momento.
Cada um segue para o seu próprio dia, com afazeres e encontros ocasionais, sem intenção de encontrar, sem grandes possibilidades de partilha. Uma ou outra refeição pontual, em casa ou na rua, mas sempre com os olhos e a cabeça no futuro.
Até a hora de deitar pra dormir funciona em fusos diferentes, e nem sempre acontece dos dois estarem acordados no mesmo momento, antes de fechar os olhos. Com um pouquinho de insistência, às vezes dá certo: agradecemos pelo dia, falamos uma última vez sobre o que queremos para as nossas vidas, e o sono leva.
Tem um ritual muito despretensioso mas bastante consolidado, no entanto, que acontece assim semanalmente, que é a pizza caseira na frente da TV. Faço a massa no liquidificador, o recheio é de atum ou legumes com gorgonzola, e assistimos vendo (quase sempre) Diva Depressão no youtube.
Diva Depressão, aliás, é um canal que eu não via solteira, mas que vemos juntos sempre que queremos rir. Emplacou muito mais que muitas outras séries que tentamos (sim, terceira temporada de White Lotus, estou falando de você).
Não foi criado com intenção, foi criado com prazer. A gente gosta de uma pizza feita em casa numa terça à noite assistindo YouTube. É o nosso negócio, um ritual bem informal.
De frequência mais ou menos semanal, também, a gente lê juntos. Um lê para o outro, alternadamente (o que não lê critica quem está lendo - ambos preferem ler a ouvir). Lemos coisas que queremos aprender pra aplicar juntos. Lemos para nos capacitar para uma vida melhor, que estamos construindo por entre as brechas do dia-a-dia.
N’O Poder do Ritual, Casper fala que existem 3 premissas para um ritual se estabelecer: intenção, atenção e repetição.
Os hábitos acontecem naturalmente (eu não preciso colocar um alarme para me lembrar de olhar os stories no instagram de quem eu gosto), e a repetição cronifica o hábito.
Só repetir, no entanto, não cria o ritual, pois o ritual presume essa intenção (vamos comungar de um prato, de um vídeo, de uma risada) e essa atenção (vamos prestar atenção um no outro, pelos próximos momentos).
Isso tudo me fez lembrar aquele artista coreano que “viralizou” no tempo em que essa palavra nem existia, com cartuns fofíssimos de um casal vivendo a sua vida comum, o Puuung. Não lembra? Esse aqui:
Na época em que descobri esses desenhos, fiquei tão encantada (e identificada pelas cenas singelas que ele desenhara) que comprei o livro, só pra poder folhear de tempos em tempos. A beleza cotidiana dessa soma de atividades simples e corriqueiras sempre me toca.

Existem alguns rituais de casais que são extremamente valorizados, como a cerimônia de casamento. O pedido de namoro, de noivado - e até, caso seja necessário, a assinatura do divórcio.
E entre esses grandes dias, com rituais bem mais impactantes, tem os múltiplos pequenos dias, que vão se repetindo e tornando habituais os gestos e costumes que dão o “recheio” da nossa vida.
Byung-Chul Han tem um livrinho (naquele mesmo padrão de sempre, pequeno e dificílimo) chamado O Desaparecimento dos Rituais, em que ele fala sobre os rituais serem para nós um porto seguro, um “lugar” no tempo em que podemos contemplar, interiorizar, refletir.
E um pouco sem saber se é causa ou consequência, dois fenômenos acontecem ao mesmo tempo: os rituais estão ficando raros, e o senso de comunidade, pertencimento também. Enquanto isso, esse indivíduo “anabolizado” de otimizações cresce - junto com a solidão e a falta de sentido.
“Os rituais estabilizam a vida. Parafraseando Antoine Saint-Exupéry, podemos dizer: os rituais estão na vida como as coisas estão no espaço.”
Byung-Chul Han, O Desaparecimento dos Rituais
Quinta-feira passada, ainda que tenha sido um Dória qualquer que tenha deslocado o Dia dos Namorados para junho, toda essa reflexão aconteceu em mim, e em muitas outras pessoas. A valorização do ordinário, do habitual e do confortável.
Se nós tivermos mais chances de transformar um hábito quase que automático num ritual com intenção e atenção, provavelmente teremos mais contentamento nos dias.