Quando foi a última vez que você se sentiu entediada?
Uma ode a essa sensação tão valiosa quanto subvalorizada
Eu nasci num mundo sem internet e vivi minha adolescência nos primórdios dela. Gostei tanto da brincadeira de bater papo com meus amiguinhos no online, que deixei tudo de lado por isso.
Mesmo com meus pais tentando controlar o tempo de uso, eu não queria saber de outra coisa. Em algum momento, com o desempenho escolar indo para o caralho, meu pai baixou um AI5 e o acesso à internet ficou totalmente proibido para mim.
Nunca mais havia tido um final de semana tão longo quanto aquele, em que eu precisei criar atividades para me distrair. Meu velho amigo tédio, que era o meu principal companheiro no tempo livre, estava de volta.
Ele foi uma das melhores coisas que me aconteceu naquele ano, em que eu recordo do resto dos dias como um borrão de alternar o uso do único computador da casa com o meu irmão.
Na semana passada, escolhi alguns pontos do livro Sociedade do Cansaço para compartilhar e pensar no impacto da “sociedade do desempenho”. Tinha muito mais a dizer, e eu não quero exagerar.
Mas há um breve capítulo, sobre o tédio profundo, que o autor já abre uma cortina que ninguém quer dizer que está esfarrapada, embora todo mundo esteja vendo:
“O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção.”
Os efeitos da tecnologia sobre a nossa saúde estão sendo estudados e eu desconfio que nós ainda vamos ter que lidar com questões físicas e psicológicas profundas. Pensando em cansaço, eu vejo em mim mesma uma melhora brutal quando estou sem acesso à internet.
Tem um ashram que eu visito algumas vezes ao ano, em Campo Alegre/SC para fazer retiros de meditação, yoga, coisas assim. E lá o sinal de celular é péssimo, quase inexistente. Você já entra sabendo que não vai nem conseguir ligar, quanto mais usar redes sociais.
Apesar do estranhamento, em algumas horas eu já sinto um alívio me inundar, e leva um ou dois dias para ficar entediada. Quando me sinto saturada de tanto caminhar pelos campos verdes e balançar na rede vendo a copa das araucárias, um outro tipo de comichão me invade.
Eu começo a ter ideias, uma melhor do que a outra. Sobre vários temas: eu penso em como posso solucionar um problema no meu relacionamento, eu crio receitas, e sim, eu penso postagens para as redes sociais e até fotos.
Parece um download do cérebro que começa a desinchar da infoxicação que são os meus dias. Uma pesquisa britânica levantou que em média os adultos pegam no celular 221 vezes ao dia, por várias razões.
E eu não sei vocês, mas eu pego para procurar uma informação específica, mas quando vejo já estou no instagram aleatoriamente, sem nenhum objetivo. O tempo se esvai em carrosséis de conteúdo, vídeos de reels e faz falta, no final de uma semana.
Eventualmente, aqueles 40minutos que você não tira para ir dar uma caminhada 3x na semana como o médico indicou, podem estar diluídos na falta de tédio que a tecnologia faz o favor de anestesiar.
Se você também está procurando o vazamento do seu tempo e da sua energia, eu peço a permissão para sugerir: lá nas configurações do seu celular, procure por tempo de uso e anote o número de horas e minutos que você usa cada aplicativo por dia.
Tente se lembrar dos seus filmes favoritos antes de ter um cardápio inesgotável dentro do seu celular - e me conta se algum dos atuais, ou das séries “muito boas” te marcaram tanto quanto esses.
Esse é o meu compromisso comigo nessa semana: deixar pelo menos meia hora de tédio me invadir e ver o que eu arrumo depois disso. Porque, para fechar ainda com o mesmo livro, “se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio constitui o ponto alto do descanso espiritual”.
Bora ficar entediada um pouquinho?