
Novembro de 2024, o personal trainer não sabe que dará sua última aula a uma aluna, que já vinha demonstrando incômodo com alguns dos tópicos que ele escolhia para “bater papo” durante as aulas.
O tiro de misericórdia, desferido por ele mesmo, é quando ela educadamente pergunta pela sua esposa, grávida de gêmeos, e depois de vagamente dizer “tudo bem”, engata no seguinte tema:
- Eu já disse pra ela que ela vai usar cinta assim que parir! E que eu não vou deixar ela ficar sem treinar. Por que mulher minha…
Preciso continuar?
Demitido. Não naquele dia, pois naquele dia, tudo o que a aluna tentava dizer, tornando aquilo uma conversa, e não um monólogo do educador físico contra um processo fisiológico esperado no pós parto da esposa, ele não ouvia.
Foi demitido pelo whatsapp, sem muitos detalhes.
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No mesmo mês, num consultório, a nutricionista esportiva numa consulta de retorno, após pesar, medir e avaliar o resultado corporal da paciente, começa o seguinte discurso:
- Vou ser dura com você.
- Não precisa, eu já sou dura o suficiente comigo mesma.
(Não, ela não parou - se existe uma coisa que a gente aprende com o tempo, é que se a pessoa pegou fôlego pra falar, ela precisa falar, doa a quem doer)
- Você até ganhou músculo, mas também ganhou gordura. Outras pacientes minhas, na menopausa inclusive, perderam 2kg de gordura comigo e você não! Eu clinico há 20 anos e meu método dá resultado. Dieta é 80% do resultado!
A paciente, depois de chorar no final da consulta, sentir-se um lixo e ainda pagar por isso, não retornou nunca mais. "Demitida” sem nem saber, levou um ghosting.
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Se parece algo exclusivo da área de saúde, permitam-me expandir para os salões de beleza. A cliente encaixou as unhas numa profissional em que não costuma ir.
Eutrófica (ou seja, dentro do parâmetro “normal” de peso e altura), ativa e muito bonita, ouviu da manicure que a atendia pela primeira vez:
- Você é muito bonita(…) de rosto.
Em outro salão, em outro estado do Brasil, bem longe dali, a manicure que já conhece a cliente há bem mais tempo, sente-se à vontade para dividir o que pensou de um vídeo sobre uma influencer gorda.
O vídeo (não consegui identificar de quem) falava sobre como a obesidade é multifatorial, sobre como não adianta dizer que “a rua é pública” para quem não pode pagar academia se a pessoa não tiver tempo livre ou mesmo segurança nas ruas em que vive. O que ela absorveu disso?
- Mas eu ainda acho que isso é coisa de gordo mimizento, sabe? Por que eles não se cuidam? Por que as gordinhas são sempre as mais atiradas em toda festa? Eu não sei, eu acho que elas podiam fazer alguma coisa. Eu não concordo!
Demitida do mesmo jeito que a nutri: levou um ghosting e vai levar algumas semanas pra perceber que perdeu a cliente por reproduzir preconceitos, neste caso, gordofobia.
Cada caso, uma pessoa, em diferentes cidades e estados do nosso Brasil.
Eu me estendi no assunto de gordofobia por ter sido o que “caiu” no meu colo nesses últimos tempos, mas a verdade é que não faltam profissionais destilando opiniões lotadas de crenças baseadas em preconceitos. Em todas as áreas.
São preconceitos e violências contra diversos grupos de pessoas. E embora nós tenhamos a sensação de que esse tipo de discurso tem aumentado, talvez não seja verdade.
Tem aumentado a polarização entre os muitos lados das diversas questões sociais com que lidamos hoje, mas é cada vez menos aceita a reprodução de falas preconceituosas das mais diversas ordens.
Vale para prestadores de serviço como manicures, onde não é área de atuação da saúde, mas a pessoa foi até lá pra se sentir bem, e não vai voltar se o seu small talk mexe com temas sensíveis.
Há um dado prospectivo que prevê que, até 2035, 1 a cada 4 brasileiros terá obesidade. Temos uma questão profunda de saúde pública precisando ser encarada de frente, e esse julgamento que culpa as pessoas individualmente não ajuda.
Já nós, profissionais de saúde, temos uma lição de humanidade muito grande a concluir. Precisamos de mais técnica, evidências científicas, pesquisas, mas vamos ter que correr em busca de nos letrar em comunicação não violenta, entrevista motivacional, e outras tantos temas.
Vamos ter que dar adeus (e já não era sem tempo) de métodos aversivos, que culpabilizam, punem ou fazem o paciente se sentir mal quando estiver diante de nós.
Eu, honestamente, já não via a hora disso acontecer.
Semana passada, engasgada com o assunto chamado “romantização da obesidade”, postei um vídeo no instagram, de onde andei sumida por uns tempos, a saber, o mês de novembro todo.
Clica aqui, se quiser assistir - são 5 minutinhos que ficaram bem didáticos.
Eu senti falta de falar com vocês!