Espero te encontrar bem hoje. Hoje preciso falar de comida, vocês vão me desculpar.
Eu praticava minha yoga na piscina do condomínio, por volta de 8h30 da manhã, quando minhas narinas foram inundadas daquele precioso cheiro do refogadinho de alho e cebola.
Eu posso ter o plano que for para a próxima refeição, quando sinto esse cheiro quero mandar tudo para o caralho e comer aquela coisa puxada no alho, esse sabor tão pungente e (pra mim) irresistível.
Triste a vida da jovem senhora que, eventualmente, quase que tirou o alho da sua comida, por perceber que ele engatilha enxaqueca. Ayurvedicamente falando, alho agrava pitta.
Foi assim que eu comecei esse texto, ainda na minha cabeça. Rememorando aqueles dias que, tendo tudo para ser ordinário e sem graça, fui levada para outro patamar de existência.
O ano devia ser início dos anos 90, quando minha prima, que morava pertinho da minha casa, chegou para brincarmos, e sorrindo como uma criança travessa, tirou um brigadeiro que levava escondido debaixo da blusa.
Haveria festinha de aniversário no dia seguinte, sua mãe já enrolava os docinhos, e ela havia surrupiado dois, um pra cada, ainda sem o granulado. Talvez aí tenha começado esse caso de amor que nunca mais foi esquecido.
Posso ser infiel a pessoas, mas ao brigadeiro, jamais.
Um longo hiato separa o dia em que novamente, fui sequestrada por um sabor, e nunca mais pude esquecê-lo: no início dos anos 2000, uma amiga me apresentou um doce de padaria chamado pingo de mel.
É como se fosse um sonho assado, porém mais macio e suave, empanadinho no leite em pó. Anos mais tarde, viria a associar com o pãozinho delícia, comum na Bahia, que parece quase cru, de tão macio.
Eu consigo dizer que era novembro de 2007, quando numa festa universitária em homenagem à América Latina, entramos na cozinha onde duas senhoras bolivianas preparavam o ceviche.
Nem consigo descrever pra vocês o que representou o momento em que minha língua sentiu aquele peixe gelado, lotado de coentro, cítrico do limão. Eu já havia provado sushi, mas não havia viciado.
Quando conheci o ceviche, algo como uma represa se rompeu dentro de mim: eu só queria repetir aquele prato tão interessante, porém que não fazia ideia de onde comprar, ou como fazer.
Passei a buscar por isso. Anos antes eu já havia sido exposta ao coentro e definido que nunca mais faria comida sem ele. Leia a ode ao coentro aqui, e duvido você não repensar.
Junto do coentro, a mãe de uma amiga havia me mostrado o que era o suco de cajá, que fez uma revolução completa no que eu chamava até então de suco de frutas. Passei a pagar 30 reais numa polpa congelada, quando 30 reais valia muito mais.
Eu não podia esquecer esse assunto.
No mesmo 2007, eu fui a Contagem/MG e, inocentemente, uma mocinha com uma cesta coberta por um pano me ofereceu: quer uma palha italiana?
Eu não entendi e ela explicou: é um biscoito com brigadeiro, fica gostoso. Ela sorria simpática, mineira e brejeira. Falou em brigadeiro, eu tô dentro. Mal sabia eu.
Quando meus dentes morderam aquela superfície macia, que cedeu completamente ao mínimo esforço, e tudo virou uma massa fofinha, com sabor de brigadeiro e um entremeado de bolacha maizena dentro da boca, um vulcão entrou em erupção aqui.
Eu haveria de, poucos anos mais tarde, ir morar em BH e inclusive fazer palha italiana pra vender. Infelizmente, nunca mais pude repetir a exata proporção entre maciez e dulçor que a minha primeira palha italiana da vida causou.
Também descobri que tem gente que consegue fazer esse doce ficar ruim, e achei um absurdo. Agora vejo-as vendidas em pacotes com um selinho adesivo e compro sempre que, ao pressionar, sinto ceder.
Em 2012, passei longas férias pelazoropa e tive dois encontros culinários que considero turning points na minha maneira de comer.
Numa cidadezinha chamada Spisska Nova Ves (faltam tremas em consoantes), interior do interior da Eslováquia, certo almoço, eu pedi uma espiga de milho como entrada.
Se você come o milho das praias brasileiras, você tem uma experiência, que dou valor. Se você come o milho sazonal, de bagos não tão gorduchos, porém infinitamente mais amarelos e concentrados em sabor (e doçura), você pode ficar meio chocado, como eu.
O milho estava lambuzado de manteiga levemente salgada, e com pontinhos pretos e chamuscados pelas brasas, numa combinação de texturas, doce e salgado, um certo defumado, nem sei dizer.
Tento reproduzir algumas vezes, nunca mais senti a mesma coisa por uma espiga de milho.
E foi na Itália, já tendo comido muito mais pizzas e focaccias que seriam razoáveis, que numa certa noite, decidi pedir a pizza alla cipolle, e ela era exatamente isso: pizza de cebola.
Massa fininha, molho de tomate, um pouco de queijo, cebolas brancas fatiadas. O dulçor e picância da cebola me encantaram com tamanha simplicidade, que viria a se tornar um sabor esquisito porém sempre reverenciado por mim.
A simplicidade dos ingredientes tão simples, o sabor acentuado, foi algo que eu ainda não tinha conhecido.
Foi dessa viagem em diante, que eu virei aquelas foodies assumidas, que colecionam livros, compram ingredientes, e tentam viver o próprio Julie&Julia. Dediquei muitos anos da minha vida a esse hobbie, aprendi e me diverti demais.
Fui a Lima só para comer - inclusive não me arrependi. Apesar disso, foi em Buenos Aires que eu comi a chaufa pela primeira vez, esse arroz cozido/frito com alguma carne, temperado com gengibre e óleo de gergelim torrado.
Eu lembro que minha amiga, vendo que eu tentava me controlar, me disse benevolente: tem um fundinho na panela, pode raspar tudo. Eu tentei não ir correndo.
Repeti esse prato em casa à exaustão, nos anos seguintes.
Eu provavelmente vivenciei outros orgasmos gastronômicos que estou esquecendo de listar agora, puxando assim pela memória. Comer é um hobbie por si só, para mim.
Mas cada um desses dias me marcou indelevelmente com aquela percepção de que um novo horizonte inteiro se abria para mim naquele momento, eu havia descoberto um novo jeito de sentir prazer - daí a analogia.
E nesse final de ano eu tenho dedicado um tempo a meditar sobre o que é uma essência minha de fato, algo que me causa profundo reconhecimento é a relação com a alimentação.
Os últimos anos foram frugais, tom pastel, coisa de quem só come por comer, pra se alimentar. Eu perdi a alegria de sentir a língua pinicar com o gengibre em conserva, o flanar passando o dedo delicadinho pelo topo dos tomates, assim pra não machucar.
Intoxiquei meu paladar (e a microbiota intestinal) com ultraprocessados, comi bala de ursinho demais e mel com queijo reblochon de menos - aquele queijo mole, mofado e que você fica indefinido entre o amor e a repugnância completa.
Esse final de semana, eu abri meus livros, namorei as fotos das receitas e questionei: por onde eu andava, que não criei mais nada? Pra que tanto macarrão de arroz com molho bolonhesa, se o mundo é tão maior que isso?
Então decidi fazer outras coisas nessa semana, aproveitando o fim das aulas, tenho as noites livres para ocupar essa cozinha - que até hoje não chamo de minha, ela funciona, mas não é o palco da minha criação.
Não é o coração da casa, é só a fonte operacional que nutre os corpos, minha alma tem pedido que eu ligue uma musiquinha e prepare o jantar, que isso costumava espantar meu cansaço - e eu agora vivo de Homer Simpson, engolindo um sanduíche no sofá.
Te digo tudo isso com vontade genuína que você encontre um caminho legal entre o prazer e a necessidade de comer. E peço no final: divide comigo a sua comida orgástica? Ela pode ser a minha próxima…
Adoro seus textos que vc fala dos prazeres de comer