Espero te encontrar bem. Não consegui enviar essa newsletter no tempo que planejei, por uma série de razões. A principal foi ter subestimado a magnitude da tarefa.
Eu tenho pouca bagagem de leitura e estudos específicos sobre o sono, e mesmo assim já dão material o suficiente para umas 3 newsletters. Talvez eu consiga em duas.
Isso inclusive me lembra um dos meus livros preferidos sobre o assunto - o Por que nós dormimos, de Matthew Walker, quando ele conta que não tinha intenção de pesquisar sobre o sono, mas acabou sendo importante na outra pesquisa que ele faria inicialmente:
Com sincera ingenuidade, não presunção, eu acreditava que encontraria a resposta dentro de dois anos. Isso foi vinte anos atrás.
(Matthew Walker)
Foi mais ou menos assim comigo aqui mexendo nos meus alfarrábios, e bem, eu espero fazer algo de valor para vocês. Vamos começar com a parte mais antiga, ayurveda e o sono.
Eu sempre gosto de dar um pouco de contexto quando vou explicar um conceito com cerca de 5mil anos de antiguidade (por escrito).
Feito para ser seguido por brâmanes, a casta sacerdotal mais privilegiada do subcontinente indiano, todas as recomendações se referiam a homens com altíssima atividade intelectual.
Os seus corpos eram literalmente o veículo para meditação, estudo, oração e aconselhamento. Por isso, se você não pode dar esse nível de prioridade para a rotina, entenda só qual é o seu melhor possível.
Nidra, a palavra em sânscrito para traduzir sono, era considerado um processo ativo. Não se falava em ciclo circadiano, mas havia uma divisão do tempo (em fatias menores que uma hora, chamados muhurtas), que seriam regidos pelos doshas.
Assim, todos nós passamos por dois ciclos dos 3 doshas (vata, pitta e kapha), sendo um diurno, outro noturno. No diurno, acontece um metabolismo mais literal, da nossa alimentação e atividades.
No noturno, um metabolismo mais sutil, que hoje podemos associar aos processos celulares e cerebrais (terminologias que não se utiliza em anatomia védica, mas uso para facilitar).
Assim, há uma grande (imensa) ênfase em separar a alimentação do sono, por haver um entendimento de que são duas funções que competem entre si. Quem já tentou deitar depois de um rodízio de pizza, há de concordar.
Mas os escritos são ainda mais detalhados, e recomendam que a alimentação ocorra majoritariamente no horário em que ainda há sol lá fora, para aproveitar quando nossa digestão está mais capacitada.
Existem recomendações alimentares nesse sentido também, sobre as quais se eu entrar a falar, não acabo esse texto nunca. Mas em síntese: concentre as refeições mais pesadas no horário ao redor do almoço.
O sono diurno é contraindicado, salvo em casos específicos (gestantes, lactantes e lactentes, idosos, pessoas doentes). Se houver uma necessidade de dormir, é recomendado que se faça antes de comer, não depois.
Entre outras razões, pelo fato do sono ajudar a abrir o apetite. Dormir depois de comer prejudica a digestão e o próprio sono. Péssimo negócio.
Ainda falando em fisiologia do sono, as quantidades: é presumível que o número mágico de 7h a 9h de sono tenha começado a aparecer ali como convenção. Sono de menos, resseca o corpo e agrava o vata.
Sono demais, aumenta a oleosidade e agrava o kapha. Há uma recomendação geral de acordar no brahma muhurta (hora do criador, em livre tradução), que se dá cerca de 1h30 antes do nascer do sol.
Considerando esse horário de levantar, e a ausência de eletricidade, podemos presumir que a hora de dormir era bem perto do anoitecer. E mesmo assim, haviam inúmeras recomendações ambientais.
Estilo: prepare o seu quarto antes de dormir, mantendo-o limpo, arejado e com roupa de cama adequada. Utilize aromas (diversas recomendações conforme o caso). Evite conversas desagradáveis e estimulantes próximo à hora de dormir.
O ano era 5mil antes de Cristo, o TikTok nem pensava em surgir, mas a mente humana já procurava estímulos e podia acabar perdendo o sono. Isso dá um pouco de perspectiva.
É da natureza da mente humana procurar estímulos - eles só vão se modificando e ficando mais e mais complexos.
É até difícil falar de sono sem falar o resto da rotina inteira, pois cada ação realizada tem um pequeno impacto. Mas o fato era: a noite era reservada para dormir, e o dia iniciava muito cedo. Antes do sol nascer.
Uma passagem meio que óbvia, mas que pode dar mais de 4h de debate (eu já vi isso acontecer em curso), diz o seguinte:
“Quando a mente, incluindo os órgãos sensoriais e motores, estão exaustos e se dissociam dos seus objetos, o indivíduo dorme.”
Caraka Samhita, cap21Sutrasthana35
Como existem diversas associações entre a mente e os 5 sentidos nos clássicos védicos, poder dissociá-los dos seus objetos é uma espécie de trégua. Quem nunca dormiu pra passar a vontade de comer uma coisa que não devia?
Hoje existem inúmeras medidas que nos permitem controlar e regular melhor alguns fatores que são “inimigos do sono”, por assim dizer. Não existiam naquela época, e mesmo a privacidade de dormir sozinho num cômodo era um grande privilégio.
Coisas que tratamos como básicas, como um cômodo limpo e arejado, eram raridades. Acredito que juntando o que hoje se conhece como “higiene do sono”, e cronobiologia, é impressionante o quanto já foi possível avançar com ayurveda.
O quanto eles já sabiam, através da observação e experimentação. Existem tratamentos corporais, que até hoje são feitos, para tratar insônia, bruxismo e ansiedade, que têm um poder incrível de relaxar a mente e os sentidos.
Tudo muito interessante, mas o que dá pra aplicar?
Vou dar algumas recomendações mínimas, que eu passo em todos os meus atendimentos:
jantar pelo menos 2h antes de dormir (idealmente 3h);
concentrar a hidratação durante o dia, para poder ir reduzindo a ingestão de líquidos à noite, evitando que precise levantar para ir ao banheiro;
programar um alarme para começar a rotina da noite e ir ajustando a mente para a nova fase, através de um ritual pré-estabelecido;
reduzir a iluminação cerca de 1h antes de dormir, idealmente 2h, usando atividades mais analógicas (livro de papel, jogos, conversar, desenhar, pintar);
usar o aroma de lavanda no quarto (pode espirrar no travesseiro, usar difusor com óleo, ou até inalar o óleo na palma das mãos);
criar um pequeno ritual mental, já deitada(o), de concentrar na respiração (por exemplo, contar 20 respirações regressivamente, ou escanear cada parte do corpo);
infusão de mulungu, melissa ou golden milk com bastante noz-moscada, em caso de maior dificuldade em ir desacelerando.
Existem mil outras técnicas e possibilidades, mas essas são tão simples, que corre o risco de você não fazer. Já vi muita gente entrar nessa pira.
Na próxima semana, se algum guerreiro ainda está aqui, vou dividir um pouco daquilo que aprendi sobre a neurobiologia do sono, com a dra. Gabriela Pantaleão. São ideias mais atuais, porém já adianto: não refuta nada do que está escrito acima.
Se você tem problemas com o seu sono, e gostaria de experimentar um atendimento ayurvédico voltado para isso, entra em contato comigo. Minha agenda tem poucos horários em agosto, mas ainda tem.