Espero te encontrar bem. Eu mesma, me encontro numa bifurcação esquisita e incômoda, como o título já deixou nas entrelinhas.
Em junho de 2022, eu fiz uma cirurgia para corrigir o grau de astigmatismo e miopia que tenho desde os 6 anos de idade. Desde então, eu enxergo como nunca na vida, mesmo com as lentes de contato, jamais enxergara tão bem.
Por exemplo: quando estamos em frente a uma gôndola de supermercado, com as etiquetas todas confusas, e está todo mundo procurando entender o preço de algum item, eu agora sou a primeira a identificar.
Letras miúdas, poluição visual, nada disso me para. Eu ganhei um superpoder, de enxergar bem e encontrar coisas difíceis. E MUITO rápido.
Mas esse texto não é sobre isso.
Eu tenho uma mente muito aguda, afiada mesmo, do tipo que encontra nos arquivos informações completas inteiras sobre o que for em segundos. Lembro de nomes e sobrenomes completos, números de matrícula, síntese de casos atendidos e até detalhes.
Na vida pessoal, quando começa alguém a titubear sobre se fizemos tal viagem em 2015 ou 2016, eu sou aquela pessoa que bate o martelo, diz quando foi, e enriquece de detalhes do contexto que evidenciam o porquê da minha resposta ser a correta.
Nessa altura, mais ou menos, vem aquele “aaaahhh”, de quem alcançou a mesma informação que eu já possuía desde o início, com a sua própria memória.
Já é de muito que isso fez de mim alguém arrogante, por confiar nesse “arquivo” tão poderoso e que nunca (ou raramente) me deixa na mão.
Eu trabalho isso dentro de mim constantemente, sabendo que essa lapidação há de durar a vida inteira, a julgar pelos últimos 39 anos.
Porém recentemente, um novo fenômeno coletivo acrescentou uma demão extra de impaciência e empáfia na minha pessoa. Com a maioria das pessoas padecendo de menos foco, eu me tornei uma chata.
Noto especialmente em conversas por aplicativos, como whatsapp, em que você responde algo que a pessoa te perguntou (qual o número do seu apartamento?), e segundos depois, ela pergunta novamente.
Ela não viu uma informação que está na palma da mão dela.
Eu sou aquela pessoa que vai na mensagem que já enviei (contendo a resposta), clico em responder e mando um emoji de mãozinhas apontando. Printo e circulo a informação.
Em suma, uma chata.
Se tem um negócio que pisa nos meus calos é repetir algo que já respondi. Quando é recente, isso me deixa mais enfurecida ainda.
Se consigo, reviro meus olhos só internamente, mas de algum modo, eu faço a pessoa saber que ela já sabia, ou já tinha a informação disponível. Por aí vocês já podem ter ideia do que é ser casado comigo (te amo amor).
Sinceramente, não sei o que mais as pessoas têm perdido
Além de ser uma pessoa chata na minha roda de amigos e família, eu realmente me coloco a pensar nas perdas pequenas e grandes que devem acontecer nesse processo de distração crônica.
No Sociedade do Cansaço, Byung Chul-Han fala de como a multitarefa é uma das coisas mais prejudiciais à nossa vida, e que modifica radicalmente a arquitetura da atenção.
Eu mesma, uma ex-multitarefa orgulhosa e contumaz, tenho criado “ilhas de foco e atenção” nos meus dias, algumas no-phone zones, que curiosamente, rendem minhas melhores ideias.
O banho de chuveiro se tornou um laboratório onde constantemente elaboro respostas complicadas a casos e processos do meu trabalho, inicio rascunhos de textos acadêmicos, posts de redes sociais e várias outras coisas.
Jamais terei um smartwatch à prova d’água que possa profanar o meu momento criativo do banho. (E é lógico que em vários dias, não sai nada de mais, além de um corpo limpinho).
Um amigo meu, justificou sua falta de atenção dizendo que era uma escolha. Achei desrespeitoso, e desde então estou pensativa e matutando sobre as minhas expectativas acerca do nível de atenção das pessoas comigo.
Por que eventualmente, quando eu mesma noto que perdi algum detalhe por desatenção ou distração, eu peço sinceras desculpas por isso, sei que a falta foi minha. Receber de alguém com quem me importo a frase de que não vai cuidar melhor, me frustra.
Ser a pessoa com mais capacidade de atenção em muitas rodas me tornou a pessoa chata do rolê. Eu sinto falta das pessoas que elas costumavam ser, quando tudo o que tínhamos era o nosso repertório ao vivo.
No trabalho, lido com processos burocráticos que exigem atenção aos detalhes, não é nada difícil, é só meio trabalhoso. Não raro, pego formulários de solicitação sem a marcação do item que a pessoa está solicitando.
Não falta o xis na caixinha: falta atenção. (E eventualmente o xis na caixinha também).
Ok, o problema existe, e eu com isso?
Recentemente, na minha formação de hatha yoga, fizemos um módulo inteiro sobre meditação. Minha professora relembrou um conceito importante que eu já conhecia do budismo:
Ninguém é irritante, eu sou irritada.
O botão que me aperta com facilidade, de reagir com impaciência e até certa empáfia quando já estou dominando algo que as pessoas continuam sem acessar, precisa ser desligado por mim.
Esse é o meu dever de casa, há anos. Entender que não tenho esse defeito, mas tenho outros, e que eles certamente apertam botões em pessoas com quem me importo.
Porém também recentemente, eu senti um desejo de encontrar pessoas novas pela vida. Que tenham essa mesma vontade de prestar atenção ao presente, e sentir o abastecimento que isso me causa.
Elas já começaram a aparecer, inclusive.
No mesmo módulo, ainda, a professora nos contou sobre um mosteiro na China, onde ainda existem xícaras com mais de 300 anos de idade. Bebendo chá dentro delas, normalmente.
E que, perguntadas por um visitante de como conseguiram manter isso, receberam a seguinte resposta da monja:
- É que aqui, quando lavamos a louça, apenas lavamos a louça.