Espero te encontrar bem. Como muitos de vocês, hoje me encontro de ligeira “ressaca” pós feriado de Páscoa, uma sensação mais antiga do que posso me lembrar.
Tinha sido uma mestiça bravia da chamada aristocracia de balcão, sedutora, rapace, farrista, com uma avidez de ventre de saciar um quartel. Entretanto, em poucos anos se apagou do mundo devido ao abuso de mel fermentado e das barras de cacau. Obscureceram-se os seus olhos ciganos, acabou-se-lhe a vivez, obrava sangue e lançava bile, e seu corpo de sereia ficou inchado e acobriado como de um morto de três dias, e soltava umas ventosidades explosivas e pestilentas que assustavam os mastins.
Descrição da personagem Bernarda, no Do Amor e Outros Demônios, de Gabriel García Márquez, que levou o amor pelo chocolate ao patamar da loucura.
Nunca gostei de chocolate, e sei que isso surpreende a maioria das pessoas. No formato ovo, então, sempre achei uma grande bobagem.
Chocolate, enquanto ingrediente em algumas sobremesas específicas, ou em alguns bombons, até que não me incomodam. Mas estão longe de ser meus prediletos.
Eu gosto do pior doce possível - aquele que vem colorido artificialmente, aromatizado e desgasta o esmalte dos dentes.
Quando criança, eu ganhava um ovo (talvez mais), e uma cestinha cheia de guloseimas proibidas fora daquele contexto: chicletes, balinhas, pirulitos e outras ninharias.
Procurávamos os chocolates ao acordar, e já podíamos comer imediatamente - eu acabava com a minha cesta (os itens preferidos) logo de manhã. Guardava os que não gostava para depois, e íamos almoçar na minha avó.
Minha avó, que tinha muitos netos, preparava um kit de docinhos embalados num saquinho plástico transparente, desses que usamos na cozinha hoje em dia.
No saquinho de minha avó, não vinha nada de mais - mas eu me sentia amada, lembrada e feliz quando o recebia. Lembro dos chocolatinhos simples e da embalagem mais simples ainda, com um calor no meu peito.
Talvez eu tenha dado um piti hoje na hora do almoço, engolindo as lágrimas de saudade junto das frases do Pai Nosso que só rezo quando estou em sua casa (ainda que, tecnicamente, agora seja a casa do meu avô).
Depois do almoço e durante o café da tarde, inúmeras sobremesas seriam servidas, e na ausência de restrição quanto ao que comia, enfiava bocados de bombons e chocolates na boca, mesmo sem fome ou vontade alguma.
À noite, não tinha jantar, afinal, o almoço fora um evento. Sempre chegava faminta ao final do dia, tanto pela ausência de nutrientes como pelo rebote da insulina causado pelo sugar high do dia inteiro.
Amanhecia ansiosa por uma retomada dos alimentos familiares, rotineiros, e de preferência, salgados. Mas era muitas vezes orientada a levar “uns chocolatinhos” de lanche para o intervalo da aula.
Todos os amiguinhos faziam igual - pedaços de ovo de chocolate com o seu laminado brilhante apareciam triunfantes na hora do recreio. Só de ver, ficava mareada novamente.
Além do mareio, sentia aquele ranço esquisito de um paladar confundido por tantas guloseimas num dia só. Intolerante a lactose sem saber, provavelmente passava mal (embora não tenha lembranças disso).
Todo esse mal estar, poderia ser dito que valia a pena, se eu ao menos gostasse de chocolate - o que é mentira. Abri meu ovo de 2023 no mês de setembro, quando fui receber visita e não tinha nada pra oferecer.
Isso está longe de querer dizer que eu não goste de doces, ou prefira alimentos salgados. Eu só gosto do pior tipo de doce possível.
Açúcar escondido em ingredientes sinistros num pacote de Cheetos? Aceito, claro. Açúcar grudento com uma fina camada sour em balas de gelatina? Agora você falou minha língua.
Açúcar tornando os amendoins crocantes, com um salpico de flor de sal pra “realçar” aquilo que já não estava escondido. Açúcar safado e sem vergonha do Leite Moça cozido com Nescau.
Não me venha com brigadeiro de cacau, eu arrumo uma espingarda. Sai daqui.
Com o passar dos tempos e a gourmetização de tudo, esses ovos que a gente come de colher, com recheios especiais como pistache e frutas vermelhas, ganharam um interesse da minha parte.
São caros, mas são saborosos, e eu comprei um, esse ano. Achei enjoativo, no entanto, e agora terei ovo de chocolate gourmet no congelador por meses.
Hoje, amanheci com algumas espinhas no rosto, a digestão lenta e dificultada não só pelos doces, mas principalmente pelos doces. Um bocadinho já é suficiente para transbordar meu paladar.
Ansiosa pela comida salgada, ordinária, por arroz com feijão e vegetais na hora do almoço. Por sorte, estou de férias e não preciso levar chocolatinho de lanche pra lugar nenhum.