Toda segunda-feira, de 8h ás 9h, estou no meu treino funcional, e torço para que o senhorzinho que frequenta esse mesmo horário tenha faltado - ou que a gente alterne de aparelhos bem longe uns dos outros.
O estabelecimento tem dois ambientes, e costuma deixar uma playlist ligeiramente animada, mas não demais, nem muito alta, e um canal da TV que exibe coisas como programas de surf, viagens, uma coisa meio Nalu Pelo Mundo (não sei se ele ainda existe ou faz isso).
Toda vez que caio na esteira, me entretenho com aqueles programas, vejo cenas bonitas feitas de drone (tem um certo programa inclusive chamado O Mundo Visto de Cima), e tem segundas que calha da gente ver um certo casal viajando por aí.
Dois apresentadores, cada um deles cuida de uma parte dos roteiros do dia, e eles são um casal. Daí que nas segundas, já é pelo menos a terceira vez, que eu estou na esteira, ele também, e ele cheio de esperteza, sorrindo, me fala:
- Aquela ali é esposa dele! É por isso que ela aparece!
Das primeiras vezes eu sorri, e fui embora, mas já estou começando a me irritar. O velhinho se incomoda com o fato da apresentadora ser casada com o apresentador. Ele não parece alcançar o fato de que o programa é dos dois.
Hoje ele mudou o approach: apontando para a apresentadora, perguntou se eu era irmã dela. Quando disse que não, já cansada, veio de novo:
- Ela é mulher do cara(eu saí sem nem sorrir, pois tenho esse problema de transparecer minha reação, e ele continua com a outra pessoa)! Assim é fácil…
Nesse momento, eu comecei a sair do corpo e do treino e fiquei pensando nessa teimosia que a gente enquanto espécie tem. Ele realmente acredita que descobriu algo que queriam esconder dele (!!), mas que a ele, não enganam não.
A idade, a vida dele, o levou a achar que apresentar um programa de viagens (e a visibilidade advinda disso) é sempre um bônus, e que todo mundo deseja isso. Que ela arrumou, pra usar uma palavra da geração dele, uma boquinha no programa.
Não faço a menor ideia se algum dia o programa foi só do cara, mas do que tenho visto, eles trabalham (obviamente) por igual, e dividem o tempo de modo que ela assuma alguns quadros, e ele outros.
Queria ser grande o suficiente para relevar, afinal, ele é um senhor que chega caminhando com dificuldade, e passa 45 dos 60min do funcional na esteira. Não foi só a musculatura dele que atrofiou, foram as ideias, também.
E isso tem ocupado espaço dentro da minha mente. Sei que o envelhecimento é inevitável, e quando o vejo, sem poder fazer os exercícios que eu faço, penso: estou aqui tentando evitar de chegar assim à idade dele.
E quando o ouço falando dessa maneira tão antiga, tão datada e extremamente preconceituosa, me pergunto: como posso evitar de chegar assim à idade dele?
Nunca achei fácil guardar meus julgamentos no bolso, mas durante décadas da minha vida, sempre fui (no mínimo) alinhada com o que havia de mais radical na luta contra todas as formas de opressão.
Quando minha geração reagiu tão mal ao se descobrir cringe, senti vergonha alheia, de ver como estávamos envelhecendo mal, esperneando que “essa geração” não tolera dificuldades.
No ano passado, mesmo, ouvi o dr Miguel Boarati, psiquiatra infantil que coordena esse setor na Santa Casa de São Paulo, falar sobre como todos nós tendemos a idealizar o passado, romantizar os sacrifícios e superações da nossa época, principalmente diante de pessoas mais jovens.
É como se não suportássemos que as gerações mais jovens usufruíssem de conquistas que, não raro, nós fizemos acontecer. E, sabendo que ninguém está imune aos seus próprios vieses, vivo em questionamento sobre como estou envelhecendo.
Meses atrás, conheci através do Clube de Leitura do Felipe Neto o livro Velhos Demais para Morrer, uma distopia em que os idosos viraram a maioria da população, e são convencidos a se inscrever para morrer voluntariamente (!!) para reequilibrar a pirâmide demográfica.
É evidente que a juventude é muito mais valorizada socialmente, e talvez por isso, por ter tanto a nosso favor, não nos incomodamos com o que parece ser um resmungar sem sentido, como o que ouço nas manhãs de segunda.
O que fica para mim, e tem um certo peso, é a responsabilidade que preciso ter comigo mesma, se quiser envelhecer com um pouquinho mais de flexibilidade (física e mental), quando (e se) chegar a minha vez.
A maravilhosa Ana Claudia Quintana Arantes, que tanto me ajudou 4 anos atrás no luto da minha avó, escreveu um livro precioso sobre o envelhecimento, em que ela compara a nossa “chegada” na velhice como a chegada a um deserto.
Já imaginou você saber que vai pro deserto e não levar uma garrafinha de água, um protetor solar, nada? É meio que isso que a gente faz com o nosso envelhecimento. E como ela diz, no livro, é quando a gente vê se as contas batem: se o que investimos no nosso cuidado físico, emocional e familiar se tornam muito evidentes.
O mais curioso é que esse senhor em questão, tem naquelas horinhas dentro do estúdio, um dos raros momentos em que pode conversar com alguém, e dá pra notar o quanto ele ama isso.
O problema é categoricamente notar como ele não conversa com ninguém: preso no repertório desenvolvido décadas atrás, ele repete semana após semana, que a apresentadora é “esposa do cara”.
Deve estar calor, lá no deserto dele.