Durma enquanto eles trabalham, pelo bem da sua saúde
Um pouco de contexto para entender o nosso cansaço crônico
Maragogi, 06 de dezembro de 2021. Eu estava há cerca de 12h numa pousada paradisíaca, onde havia desembarcado na noite anterior, após passar os últimos meses sonhando com cada detalhe desse dia.
Paguei a viagem com antecedência, planejei cada minuto no roteiro que sempre faço, contratei alguns passeios, aluguei carro, anotei os nomes dos restaurantes que queria conhecer.
Fiz tudo isso nos intervalos de finalizar meus relatórios anuais, atender todas as pessoas, organizar que ninguém ficasse sem resposta, fazer as malas para o Nordeste, comprar os presentes de Natal, deixar todas as contas de casa pagas.
Já estava a milhares de quilômetros de casa, e não conseguia abandonar a incômoda sensação de que estava esquecendo alguma coisa. Essa sombra me perseguiu por quase 4 dias, antes que eu simplesmente desligasse esse alerta.
Eu não havia esquecido nada, nem mesmo de levar o filtro solar na mala de mão. Eu só estava há tanto tempo sob contínuo estado de alerta, que não lembrava mais como era a ideia de não dever nada a ninguém.
Foi justamente nessa viagem, que me caiu nas mãos o Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han. Eu devorei numa sentada, um livro fininho porém muito denso. Certamente não entendi boa parte, considerando o tanto de intertextualidade com outros autores que eu nunca li.
Mas peguei alguns detalhes que me parecem suficientes para conversar sobre isso com você hoje. O autor fala da “paisagem patológica” do nosso tempo marcada por adoecimentos neuronais, psíquicos e pelo óbvio cansaço - o título da obra.
Diferenciando uma época anterior à nossa, em que a cobrança vinha de fora, os conflitos eram explícitos e a repressão bem mais óbvia (a “sociedade do controle”), chegamos no que ele chama de “sociedade do desempenho”.
Na sociedade do desempenho, cada pessoa se torna “empresário de si mesmo”, e com tamanho afinco busca maximizar a própria produtividade, que é muito mais eficaz do que qualquer chefe ou patrão externo.
O chefe internalizado é o mais carrasco de todos, dorme e acorda com você diariamente. Sentir culpa, vergonha ou que tem algo a esconder quando não está trabalhando vai se tornando comum.
Você pode me dizer que individualmente não se deixou levar por essa sandice, que não internalizou o chefe. Esse foi o meu primeiro pensamento, também. Mas todo problema coletivo repercute na nossa vida individual, queiramos ou não.
Segundo o autor, esse modelo de pensamento ocupa hoje o inconsciente coletivo. E eu acho que já nem é mais tão inconsciente assim.
Caminhar ouvindo um podcast de conteúdo, para “otimizar o tempo”. Ver uma aula na velocidade 2.0, “para ganhar tempo”. Responder whatsapp diretamente do seu vaso sanitário. Desistir de uma compra ou de contratar alguém se a pessoa “demora demais” para responder…
A consequência geral de viver direcionado para o desempenho é o cansaço. Você pode não ter nada a ver com seus colegas de trânsito (cada um no seu carro ou espremidos dentro do transporte público), a não ser o cansaço.
O seu corpo pode não ter se esforçado em nenhum exercício, mas mesmo assim, o cansaço te puxa para a horizontal. Após 8h sentado numa cadeira, outros 40min sentado num veículo, tudo o que você quer é o seu sofá.
Há algo de glamourizado na estafa, inclusive. É um pouco bonito e virtuoso dizer que não temos tempo para mais nada. E no caso de você ter um tempinho livre por qualquer razão, pode acontecer essa incômoda sensação dos meus 3 primeiros dias de férias: devo ter deixado alguma coisa.
Por mais que eu faça combates constantes ao excesso de programação (na vida e na mente), sinto um pouco de aflição ao pensar: o que vou fazer agora? Como aproveitar o meu tempo o melhor possível?
Essa pergunta parece ter um peso ainda maior quando estou fora do trabalho: como fazer caber em 2 dias todos os desejos de uma semana?
Como fazer caber nas férias todos os tempos que não tivemos o ano inteiro? Ou mais importante: como não sucumbir ao cansaço, já que ele entra por todas as frestas? E é assim, que mesmo combatendo a sociedade do desempenho, eu acabo reproduzindo ela no meu sagrado tempo livre.
Para tentar encurtar um texto longo, o autor deixa algumas pistas de como superar esse modo de vida. Spoiler: individualmente, nós sempre podemos fazer alguns escapes. Mas a superação desse modelo tem que ser coletiva.
Se você está sentindo o peso de muitos tijolos nas suas costas agora, ansiando pela próxima sexta-feira, sabe que não está sozinha(o). Antes de pensar que o dia é curto para tudo o que temos de fazer, precisamos olhar melhor para esse “tudo”.
Tão importante quanto olhar o que não foi feito, é olhar o que foi feito. Aquelas inúmeras ninharias que você nem contabiliza mais, mas que tomam o seu precioso tempo e ocupam algum lugar na sua mente.
Recolher a roupa seca. Pagar o boleto online. Fazer o PIX de tal coisa. Trocar o saco plástico das lixeiras. Jogar fora os papéis acumulados. Enxugar a mesa onde foi derramado líquido. Encaminhar aquele arquivo de 8 meses atrás que alguém não salvou e voltou a pedir.
Esses exemplos acima são meus, que quando perguntada sobre o que fiz ontem, respondo “nada”. De quantos “nadas” estamos preenchendo nossos espaços de tempo?
Byung-Chul Han nos diz que “o cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando”. Se o problema é coletivo, a solução também precisa ser coletiva.
E eu desejo, de coração, que nessa semana nós tenhamos tempo e lugar para rasgar um pouco o véu do cansaço, individual e coletivamente.